Nem antes, nem depois: Testamento vital a o direito de “morrer na hora certa”
Permitiu o destino que uma de minhas irmãs mais velhas passasse seus últimos dias na UTI de um hospital e, a propósito dela tenho duas lembranças marcantes:
A primeira delas é que nas fatídicas ocasiões em que passei ao seu lado naquele ambiente desolador, aproveitando a visita do médico para apontar os aparelhos que indicavam o monitoramento dos sinais vitais, exclamei:
– A saturação, os batimentos cardíacos e a pressão arterial estão ótimos, não é mesmo Doutor?
Sem esconder o sorriso como resposta à minha ingenuidade o médico foi pronto a esclarecer:
– Os números indicam que as máquinas que mantém a paciente viva encontram-se em ótimo estado de funcionamento, mas já não dizem nada a respeito de sua irmã. Enquanto permanecerem ligados, apenas os indicadores das máquinas continuarão “ótimos”.
Com poucas palavras aquele médico chamou a atenção para um fato óbvio: com a aplicação das novas tecnologias à Medicina chegamos a um estágio tão avançado que já é possível, em diversas situações, adiar a morte por um tempo prolongadíssimo.
A estes procedimentos damos o nome de DISTANASIA (do grego “Di ” = mal, algo mal feito, e “Thanatos” = morte): Nada mais, nada menos do que uma “má morte”, uma intensificação terapêutica pela qual se obriga os médicos a fazer o possível para salvar seus pacientes, a qualquer preço, mesmo que clinicamente se mostre impossível ao paciente retornar a uma vida racional e autônoma.
E, se é verdade que estes procedimentos oferecem vantagens, também é inegável que este prolongamento da vida em doentes terminais pode trazer, igualmente, profundo sofrimento ao enfermo e aos seus entes queridos.
A questão é: Já que a lei, as regras morais e os preceitos religiosos proíbem a eutanásia, é razoável que se exija, contraditoriamente, o adiamento inútil da morte, ainda que ao custo de grande sofrimento do paciente e de seus entes queridos?
É inegável, portanto, o mérito do Conselho Federal de Medicina, o qual, após prolongados estudos e discussões entre seus pares, fez publicar a Resolução nº 1995, que desde 2012 assegura a todos nós, o direito de registrar, em seu histórico clínico, um TESTAMENTO VITAL, ou, em outras palavras, o desejo de não ser submetido a tratamentos considerados invasivos ou dolorosos para prolongar sua vida em caso de uma situação terminal.
Através da Resolução 1995, se introduziu, em nossas normas jurídicas o direito à manifestação prévia de seu desejo à chamada “ortotanásia” (do grego “Orto = correto; “Thanatos” = morte) em situações de enfermidade terminal.
Esta norma, que tem o inegável mérito de proteger os médicos e os pacientes, bem como de “lançar luz” sobre um tema pouco discutido entre as pessoas, oferece outras peculiaridades que a tornam um documento jurídico revolucionário para a nossa lista de direitos. Confira-se, abaixo:
– Trata-se de documento facultativo, e que pode ser elaborado em qualquer momento da vida;
– Podem ser elaboradas por maiores de 18 anos, bastando, para tanto, que o cidadão se encontre no pleno gozo de sua lucidez;
– Trata-se de um documento que se sobrepõe à vontade dos familiares;
– Pode ser revogado, ou alterado a qualquer tempo;
Como A Resolução 1995 do Conselho Federal de Medicina não previu uma forma específica para a elaboração das diretivas antecipadas, sua manifestação é admitida em qualquer meio (escritura pública ou documento particular), porém, em razão de sua relevância, para a sua elaboração se recomenda contar com o suporte profissional de um advogado, e de um médico especialista em cuidados paliativos.
Embora estejamos bem cientes de que toda e qualquer discussão que resvale na constatação, difícil, da finitude da existência humana, e apesar de reconhecer que o assunto tende a causar imensa repulsa, especialmente quando pressupõe a necessidade de que o homem reconheça, que mesmo remotamente, está sujeito a uma enfermidade mortal, terminal, no leito de um hospital, trata-se de um assunto que merece nossas reflexões.
Sobre minha segunda lembrança a respeito de minha irmã?
Após seu Funeral, ao organizar seus pertences, encontrei um caderninho em que ela registrava todos os acontecimentos marcantes de nossa trajetória de vida: minha formatura na graduação, o casamento, a conclusão do Mestrado, a Comenda: silenciosa e delicadamente comemorava e torcia por nossa busca pelo crescimento pessoal e pelo desejo de nos tornarmos pessoas melhores.
Fosse eu tão competente e cuidadoso com o registro de nossa história de vida, certamente escreveria, em meu caderninho, minha gratidão à minha irmã porque, até em sua partida, ofereceu-me a oportunidade deste aprendizado marcante, esclarecedor, obtido através do diálogo com seu médico na UTI, o qual, inclusive me serviu de estímulo para elaborar meu próprio testamento vital que, em razão de sua natureza de documento público, pode ser acessado através do seguinte link: https://1drv.ms/b/s!AukF4NLhV-5Wm5knSm0BprYQzJY1ZA
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